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A supressão do meio nas pinturas de André Ricardo

Carlos Eduardo Riccioppo

 

      Quer se trate de algo que retenham ou de algo que reabilitem (não é possível sabê-lo ao certo), é flagrante nas pinturas de André Ricardo que elas possuam aquela espécie de “dupla feição” que remonta a alguns séculos de tradição: são uma coisa, de perto, e outra, de longe. 
Antes, porém, que se possa supor que essas pinturas pleiteiem o espaço intermediário que se estende entre essas duas distâncias como uma dimensão dedicada à experiência delas mesmas (ou, dito de outro modo, antes que se possa suspeitar que elas se constituam num jogo entre o efeito que produzem à distância e os acontecimentos pictóricos que ostentam na proximidade de suas superfícies), ocorre que sua dupla natureza prescinde da comunicação entre as duas instâncias, e isto porque, de onde quer que elas sejam confrontadas, elas respondem irredutíveis, completas, certeiras demais para que solicitem um passo à frente ou atrás.
      De longe, essas pinturas são convexas, repelentes. Em umas, a gama vibrante de amarelos e alaranjados que não raro se deposita em suas superfícies as torna estridentes; em outras, no extremo contrário, as variações entre pretos e azuis escuros conferem a elas uma opacidade muito decisiva, quase cega. Não há a suspeita do gesto, não há dúvida de que são feitas para exibir sua luminosidade quase néon. Trata-se de imagens compostas de figuras incandescentes que, além disso, são formas geometricamente recortadas (ou, então, resumidas ao extremo do reconhecimento) de caçambas e escavadeiras, sempre destacadas diante de contraplanos; e esses “fundos”, com relação a essas “figuras”, apresentam-se ou totalmente contrastantes, ou igualmente luminosos, de modo que as pinturas compartilham daquela identidade estandardizada que se pode encontrar nas placas de sinalização de trânsito – se não for mesmo possível dizer que as pinturas de André, com sua evidente temática urbana, mimetizem o vocabulário da cidade, inclusive tomando emprestado dela o modo de visibilidade padrão “preto e amarelo”, ausência e excesso de luminosidade. Não deve haver qualquer interioridade naqueles objetos, as caçambas e as escavadeiras; eles são refletidos ou rebatidos para a frente das superfícies das pinturas. 
      Seria de se esperar que, de perto, essas pinturas fossem, então, côncavas, convidativas. De fato, a observação mais rente revela os “acontecimentos” de que aquelas superfícies são portadoras: séries de incidentes pictóricos que tratam de uma temporalidade incompatível com a daquelas imagens incandescentes – há, na vista aproximada, gestos, pinceladas, sobreposições de tinta, camadas a serem descobertas. 
      Mas a surpresa reside no fato de que a proximidade das pinturas implique em que não se possua relação de escala suficiente para que se possa intuir em qual momento a impressão de profundidade se fixa ou desaparece; e nem para que se possa notar o momento em que as operações pictóricas do artista comecem ou cessem de resultar nos efeitos luminosos que se vê à distância (e isto não apenas nas telas de larga escala; nas pequenas, a intransigência entre as duas instâncias aumenta ao passo que a distância entre elas diminui – “figura” e “fundo” contrastam muito mais, ou, então, são muito mais “equalizados”, e os incidentes dentro cada campo passam a requerer quase que o olho colado para serem notados).
      As pinturas de André Ricardo parecem acelerar as distâncias. Perto das pinturas já se está demasiado dentro delas, e, longe, muito exterior a elas – o espaço intermediário parece não mais pertencer à pintura, ou pelo menos tende a ser suprimido em sua polarização. O curioso é que esse é o lugar de onde se pode ver as dobras tridimensionais dos objetos que o artista retrata – objetos marcados exatamente por seu caráter continente, o que é reforçado pela disposição das caçambas e escavadeiras em vistas laterais, três quartos, ou de acordo com uma série de perspectivações. Mas, alguns passos atrás, e as superfícies estiram esses códigos até um ponto em que eles desaparecem na alta frequência das cores; passos adiante, e eles se perdem entre os demais incidentes da tela. Talvez resida aí a impressão de que nas pinturas de André não há acesso possível aos objetos que elas exibem.

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