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A Dimensão Espacial da Cor

Cauê Alves

_Quatro séculos após as “soluções” do Renascimento e três séculos após Descartes, a profundidade continua sendo nova, e exige que a busquem, não “uma vez na vida”, mas durante toda a vida. Merleau-Ponty_


      O que chama atenção na pintura de André Ricardo é o modo como ele explora as diferentes noções de espaço das cores. Tal como aparecem em seu trabalho, as cores não apresentam qualquer intenção em mimetizar o mundo visível, o que interessa em sua obra é a potência expressiva delas. A pesquisa do artista se aproxima da compreensão da dimensão própria de cada cor em relação a outras. O espaço, como o tempo, é uma das dimensões da cor, mas o espaço dessas pinturas não poderia ser descrito objetivamente a partir de categorias racionais. A profundidade não é apenas o intervalo entre dois corpos medida quantitativamente e com precisão. Ela é a ligação interna entre as coisas, o que está entre, a distância que conserva os objetos unidos e inseparáveis de seu entorno. 
      As Caçambas e as Escavadeiras são séries de pinturas em que espaços, que jamais são dominados completamente pelo olhar, surgem diante de nós e tendem, como em um buraco negro, a sugar tudo ao seu redor. Isso se dá porque há uma espécie de deformação do espaço-tempo presente nas telas. Tudo se passa como se o tempo estivesse suspenso, como se ele não transcorresse e algo interrompesse a sua continuidade e movimento.  Esse momento de suspensão talvez se relacione com a dimensão espiritual de sua obra, gerada antes de tudo pela espessura cromática das pinturas. 
      A experiência que isso proporciona é justamente de um vazio, de um vácuo preenchido e gerado pela cor. Está também na ambiguidade de um vazio que age sobre os olhos, e os enche completamente, a força dessas telas.  Não se trata apenas de um espaço negativo, uma vez que nossa experiência do espaço vai além das tradicionais oposições e dicotomias, mas de um espaço em que o positivo e o negativo se completam e precisam um do outro.  Em vez de dualidade há unidade em cada uma das pinturas. E os contrastes entre as cores não enfraquece essa unidade, mas a reforça.
      Há nas imagens das Caçambas e Escavadeiras uma espécie de falta, de carência, que exige de nós uma postura ativa de completar e atribuir sentido. Essa incompletude das telas, essa abertura ao outro se dá porque elas abrigam em seu interior um vazio, algo invisível, e é justamente isso que chama atenção no trabalho. É do vazio, que não é apenas negação, que surge todo o campo visível da obra. Ou seja, é da invisibilidade da pintura, de um fundo primordial presente nela, que nasce tudo o que pode ser visto. Assim como só existe música se houver silêncio, podemos dizer que a pintura de André Ricardo pressupõe e aborda um vazio originário que a torna visível. 
      Ao mesmo tempo em que possui uma forma bastante depurada que dialoga com a grande tradição da pintura, com mestres do porte de um Rothko, a obra de André Ricardo não se furta de tratar do mundo que a rodeia. Numa cidade como São Paulo em que caçambas e escavadeiras são quase onipresentes, em que esbarramos com elas em cada esquina, o motivo inicial de sua pintura não é apenas um álibi para tratar de questões metafísicas. 
      Mesmo porque toda a dimensão espiritual ou metafísica do trabalho não acontece fora dele, num mundo transcendente ou num espaço ideal. É no interior do trabalho, no campo da imanência, que essas questões surgem.  Mais do que uma forma vazia, há nesses trabalhos figuras prosaicas claramente identificáveis e com francas conexões com a trajetória de vida do artista. André Ricardo, por um curto período, trabalhou numa loja de materiais de construção, onde teve contato direto com caçambas de caminhões. Descarregou muito material de dentro delas e teve uma dura experiência com esses espaços vazios.
      As Escavadeiras, que na mostra estão penduradas perto do chão, na altura mesma em que as maquinas operam, possuem uma presença física marcante.  E é justamente das escavadeiras anônimas com garras agressivas, que não aparentam ter um sujeito por trás que as comanda, que surge o poder destrutivo do vazio. Numa cidade em que construções são demolidas num instante para que logo enormes prédios brotem essas pinturas mais do que abordar o vazio da vida e da paisagem urbana, nos revelam pela cor a sua profundidade. 

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