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Entre 

José Bento Ferreira

Nem um nem outro, cada elemento não produz sentido senão em relação. Cores, gestos e telas constituem uma poética que se afirma em contraste com as dos outros. Veneramos a obra, o artista e a forma, mas a pintura é um ser de relação, ao contrário do que parecem ser as coisas quaisquer.

A diferença atua como um elo. Duas telas monocromáticas transformam-se ao ser justapostas, como peças de roupa combinadas no corpo. Não existe cor em estado puro. Uma superfície pintada liga-as por trás para que o díptico se torne um objeto único na “pintura de ligação” de Sérgio Sister. Uma terceira cor exala pela fresta entre as telas. A réstia sutil modifica-as, provoca uma segunda transformação para quem não a havia percebido à primeira vista, embora ela estivesse lá, atuante e latente.

A relação entre cores próximas é atravessada por uma tonalidade distante ou oposta. No fundo da homogeneidade, por trás do contraste fácil, irradia a diferença. A “grande diferença” habita a “menor diferença”, conforme o crítico Alberto Tassinari.

O tempo conecta o que fica e o que passa, não está nas horas acumuladas pelo relógio. Toda percepção do espaço é uma experiência do tempo. O espaço é um “conceito temporal”, afirmou o pintor suíço Paul Klee. O mundo se abre a partir da fricção de cada visada com o que estava retido, sedimentado na memória da experiência vivida, acumulada. Cada pincelada se produz ao se distinguir das anteriores e da visão do artista.

Nenhuma forma se desprende por completo. Também uma pintura monocromática define-se pelo espaço ao redor, em contraste com a superfície onde está exposta e com a luminosidade do ambiente. Para além do entorno, a percepção da cor “faz constelação”, segundo o filósofo Merleau-Ponty, com outras tonalidades semelhantes ou diversas, mobilizadas por analogia e diferenciação.

Ao pintar sobre caixas, ripas e pontaletes, Sister estende ao mundo ao redor o universo das relações de cores e formas obtidas na superfície da pintura. O plano não existe no mundo natural, resulta da abstração e da indústria. Preencher as superfícies dos objetos industrializados com os contrastes realizados nas telas equivale a transpor para o mundo da vida uma experiência até então restrita às duas dimensões dos quadros. Esses objetos oferecem possibilidades expressivas que as telas não possuem. Nas caixas, as relações entre campos de cor incorporam a abertura para o mundo. O espaço físico já não fica ao redor, mas no meio, entre.

Se o espaço se apresenta como um nó de reciprocidades, então pouco importa se a pintura é figurativa ou abstrata. Formar-se tendo Sérgio Sister e outros pintores abstratos como referência não impediu que Bruno Dunley e André Ricardo pintassem a partir de figuras. O flerte com o figurativo não os distrai da pesquisa por relações cromáticas e formais. André Ricardo apresenta lado a lado imagens e campos de cor.

Bruno Dunley envolve algumas imagens com espessas nesgas de tinta. Vultos mergulham no espaço. As aparições que povoam suas telas apontam para uma dimensão mítica e arquetípica. Imagens de arquivos, retratos, memórias e visões oníricas coexistem com pinturas abstratas e monocromáticas.

Não há uma transição abrupta entre figurativo e abstrato para Bruno Dunley. A pintura abstrata também é de imagem. A noção de imagem não se limita à visibilidade, ela designa “um modo de aparição no campo do vísivel” que “está entre o ser e o não-ser” e que é um “ser entre”, conforme a socióloga Marie-José Mondzain explica a respeito do antigo conceito de ícone. Para ela, a imagem possibilita uma “subjetivação do olhar”, ela “constitui o sujeito”.

Bruno Dunley e André Ricardo possuem sólida formação, mas além disso compartilham o interesse por uma outra história da arte, relegada a um lugar subalterno apesar de portadora das visibilidades que chamaram a atenção dos artistas modernos, como a produção artística centro-asiática, a arte mexicana, têxteis da Polinésia, desenhos egípcios, ícones bizantinos, iluminuras medievais e persas. Essa abertura proporciona um olhar diferenciado para as imagens do mundo ao redor.

André Ricardo observa formas arquitetônicas, animais, veículos e todo desenho do cotidiano. Depuradas e recombinadas nas telas, as imagens das coisas aparecem repletas de significado. Formas feitas para iludir, agradar e seduzir são reduzidas e traduzidas pelo artista. Assumem um aspecto rígido, hierático. Seus contornos e cores tornam-se resplandescentes de modo inteiramente outro que o da visão comum das coisas. O ídolo ressurge como ícone.

Para os três artistas, a pintura é uma recusa à condição de coisa. Os quadros são objetos materiais feitos de relações, portadores de certa imaterialidade. A pintura, como toda imagem, não é coisa, é olhar. Ela instaura olhares, produz relações. Reunidos ao redor dela, os espectadores atuam como sujeitos, apesar das forças que capturam as relações sociais, atrofiam a imagem, tratam pessoas como coisas.

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