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A Vocação das Formas

Claudinei Roberto da Silva

A vontade que engendra e dá forma a um determinado projeto artístico pode ser percebida como uma vocação pautada em um interesse qualquer, em uma escolha qualquer do artista.  Como nos lembra Sartre, “A escolha é possível, num certo sentido, porém o que não é possível é não escolher”. Assim, certos temas se infiltram num determinado repertório de imagens sem que, aparentemente, tenha havido uma “negociação consciente” entre ele, o “tema” e o artista. Só posteriormente, é que o “tema” ou “motivo” passa a ser compreendido como orgânico a um projeto que, apesar dos seus inevitáveis lastros subconscientes, é essencialmente intelectual.

A biografia do artista pode oferecer elementos necessários à compreensão de sua obra. A partir dessa constatação, é razoável supor que uma história de arte assim construída, terá um caráter sociológico intrinsecamente relacionado à história da coletividade em que ela, obra, se insere. Neste contexto, arte é um produto social que pode comportar, em certos e bem executados projetos estético-éticos, uma universalidade de propósitos e sentidos. É assim que imaginamos os percursos que levam à série de trabalhos de André Ricardo apresentados nesta exposição.

Ricardo é, ainda agora, um jovem e exigente pintor e nele, como em poucos, a juventude não é sinônimo de inexperiência, mas de vitalidade, inclusive intelectual que submete o artista a uma rotina metódica de trabalho e pesquisas. Como resultado, temos os trabalhos que refletem, na sua superfície, qualidades obtidas a partir de variada gama de tratamentos, desdobrando-se em cores, e campos de cores, densamente construídos, opacos ou transparentes, combinados em arranjos inventivos e essencialistas.   Em suas recentes composições, uma figuração de assento POP não deixa de evocar um Concretismo de caráter bastante peculiar que talvez possa ser associado àquele “Concretismo afetivo” levado a termo por artistas como Rubem Valentim ou Emanoel Araújo.

Nessa figuração, certos signos são alusivos ou, pelo menos, indiciam um interesse do artista pelo universo da cultura dita popular. Não se trata aí de apropriações das formas instaladas nos dispositivos de comunicação populares, nem da revelação das configurações plasmadas por uma arquitetura de sintaxe popular, proletária e periférica. Mas antes, um resgate, uma adesão ou recuperação dessas visualidades e desse “lugar do mundo” que interessa ao artista e estivesse talvez, soterrado ou submergido pela narrativa engendrada por um saber acadêmico, contraditoriamente ou não, também necessário à sensibilidade e experiência do artista para realização dessa etapa de sua obra.

Se for certo sugerir que a obra de Alfredo Volpi referencia esses trabalhos de André Ricardo, é igualmente certo ponderar sobre influências menos visíveis ou menos óbvias, mas nem por isso ausente ao interesse do artista. Um exemplo seria o já referido construtivismo afro-brasileiro, muito raramente mencionado nas historiografias de arte brasileiras forjadas em academias (principalmente do sudeste e sul do país), que só agora e lentamente tem devotado interesse a uma produção artística nascida na periferia que se quer descolonizada.

Os trabalhos atuais de André Ricardo estão, coerentemente, em diálogo com àquela parcela da sua produção também recentemente realizada, isto é, a série “Campo Limpo”. Este conjunto lhe possibilitou um campo de investigações que não admite a supressão do rigor técnico-formal peculiar ao artista. Mas, foi alargando paulatinamente uma “afetuosidade” espelhada já no título da atual mostra “Caiaca!”, primeira palavra pronunciada por Dandara, filha do artista. Essa quase onomatopeia pronunciada pela criança e sem sentido aparente, ganha, aos ouvidos do pai, um valor especial e único. As paisagens, os objetos, enfim, o lugar do mundo de onde são prospectadas certas imagens capturadas por André Ricardo são, elas também, singulares nas sugestões que projetam, em suas proporções e formatos. Podem ser tidas até como pueris aos olhos e sentidos mais comprometidos “colonialmente”, no entanto, são plenas de uma potência que os tramites poéticos operados pelo artista tem o condão de revelar-nos.

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